No meio do caminho tinha um poeta
No meio do caminho tinha um poeta. Sentado numa pedra – sob uma árvore. Parecia dormir. O vento forte esvoaçava as folhas do livro, caído ao seu lado.
– Acorda poeta! O barro da casa que o João está construindo pode cair na sua cabeça! – Dizia o menino com a pipa na mão. Mas o sono era profundo. Nem o TOC TOC TOC irritante do Pica Pau despertador bicando o toco seco às margens do riacho seria capaz de acordá-lo. Aliás, a sinfonia cadenciada das águas correndo sobre as pedras do pequeno riacho funcionara como uma cantiga de ninar… e o poeta adormeceu.
O que faria o poeta acordar?
Talvez o som das buzinas dos estressados motoristas no engarrafamento do farol da esquina, ou uma enfiada de barulhos modernos, marteladas que furam o solo no qual nascerá outro edifício, onde mais vidas engaioladas se multiplicarão. Impossível! Ali, não havia esquina, não havia farol, aliás, não havia carros e nem motoristas estressados. Naquele mundo tão simples e natural ainda não existia o caos. Ou será que uma flor furará o asfalto?
Com que estaria o poeta sonhando?
Talvez sonhasse com os tempos de criança, quando, carregando o bornal de saco de farelo a tiracolo seguia por esse mesmo caminho, alegre e fagueiro para as aulas na Escola Rural. Dentro da mochila, além do livro de português do professor Domingos Pascoal Cegalla levava também os cadernos estampados com a bandeira e a letra do símbolo da pátria:
Salve lindo pendão da esperança,
Salve símbolo augusto da paz!
Tua nobre presença à lembrança
A grandeza da Pátria nos traz.
Vez ou outra quando o sol queimava muito suas idéias no percurso de cinco quilômetros entre sua casa e a escola, costumava se sentar para tomar um fôlego, sob a mesma árvore, o mesmo abacateiro…
Teimosamente aquela árvore desafiara o tempo e sobrevivera a inúmeras queimadas ao seu redor. Passados tantos anos ainda continuava ali, firme e de pé, oferecendo gratuitamente abrigo e a sombra acolhedora e sonifera. Além do alimento preferido dos sanhaços, melros e sabiás.
O que faria o poeta acordar?
Quem sabe o barulho da sirene da ambulância que podia passar a qualquer momento, pedindo espaço para socorrer o entregador de pizza express, atropelado e estatelado ao relento, num condomínio fechado. Ou seria a sirene do Corpo de Bombeiros, chamado às pressas para apagar o incêndio numa residência, causado pelo estouro de um microondas? Mas isso também era impossível! Por ali nunca aconteceram acidentes nem incêndios.
Condomínio, pizza express, microondas? O que seria isso? Seu mundo era muito mais simples.
O que estaria o poeta sonhando?
Talvez até sonhasse com outro barulho. Um barulho do qual gostava tanto: o apito do trem Expresso se aproximando e fazendo a curva da estação de sua então pequena cidade. Apito que soava alegre anunciando mais uma chegada, e não o som enfurecido das buzinas dos carros que parecia dizer: saía da minha frente! Seus olhos eram pequenos para ver essa cena, talvez por isso os mantivesse fechados.
Poderia estar sonhando com as raras viagens à capital. Viagens divertidas em veículo sem combustíveis poluentes, entre montanhas e vales floridos, sobre trilhos e sob túneis. O mimo era o presente dos pais pelo aniversario ou bom aproveitamento nos testes de fim de ano na escola. Talvez sonhasse com a mãe, e seu avental sujo de ovo, o esperando no portão do pequeno alpendre no dia da conclusão da quarta série primária: – parabéns meu filho! Hoje em dia, José, sem estudo não se vai a lugar nenhum! Mal sabia ela que ele, mesmo antes de dominar o abededário e a tabuada, já fizera tantas viagens. Viagens fantásticas indo a ilhas distantes. mágicas e imaginárias, como fazia Robison Crusoé. E como fazem todos os poetas, como ele.
Porém, o sono profundo poderia o estar levando a recordar dos divertidos passeios com os irmãos, nos bondes elétricos. À sua frente, atrás da cabine do motorneiro, a propaganda do remédio, que jamais esquecera:
Veja ilustre passageiro
O belo tipo faceiro
Que o sr tem ao seu lado.
E no entanto acredite,
Quase morreu de bronquite,
Salvou-o o Rhum Creosotado.
No sono daquela tarde via-se novamente com calça curta, suspensório e brilhosos sapatos Vulcabrás, engraxados com pasta Nugget, esperando ansioso na fila da matinê do cinema para assistir as aventuras de Tarzan, o rei das selvas, ou de El Cid, o herói espanhol Dom Rodrigo de Vivar, na sua luta contra os mouros.
BEM TE VI! BEM TE VI! BEM TE VI!
O som do pássaro multicolorido, um dos raros espécimes que ainda existiam por ali, finalmente acordou o poeta… O sonho acabou e agora ele estava de volta á máquina do mundo. Iria rejeitá-la?
Após consultar o seu relógio, assustou-se com o adiantado da hora. Parecia nervoso.
– E agora, José? A cidade grande estava a sua frente. Aquele ritmo frenético ao qual teria que retornar deixou-o desanimado. O mundo é mesmo de cimento armado. Porém, aquele mundo antigo dormita em suas lembranças e numa doída fotografia na parede de sua casa. A distância entre o homem e a natureza o incomodava.
Antes de se levantar ainda anotou alguma coisa num pedaço de papel e o guardou dentro do bolso. Talvez fosse uma idéia para o título do seu próximo livro: “Fala, abacateiro”, um plágio consciente de “Fala, amendoeira”, a obra que mais admirava do seu grande mestre, ídolo e conterrâneo Carlos Drummond de Andrade.
Livro que, aliás, lia antes da sesta.
Victor Kingma